quarta-feira, 18 de novembro de 2020

 Prólogo da obra Breve história da justiça, de David Johnston. WMF Martins Fontes.

 

 

DO MODELO CLÁSSICO AO SENSO DE JUSTIÇA

 

É frequente pressupormos que as ações das pessoas procuram, invariavelmente, promover seus próprios interesses. Esse pressuposto influencia a percepção que temos tanto das figuras públicas como de nossos conhecidos do dia a dia. Quando percebemos uma conduta difícil de explicar, em geral supomos que, se ela for examinada mais detalhadamente, veremos que existem motivos egoístas por detrás. 

 

Acreditamos que os políticos e as celebridades são movidos pelo desejo de obter vantagens pessoais na forma de riqueza ou de fama – ou ambas –, e vemos com desconfiança as declarações de que esses personagens são motivados principalmente pelo interesse no bem comum ou por outros objetivos altruístas. 

 

Filósofos e cientistas sociais têm apresentado afirmações impressionantes a respeito do pressuposto do egoísmo. Na obra mais elogiada de filosofia política jamais escrita em inglês, Thomas Hobbes declarou que, “dos atos voluntários de cada homem, o propósito é algum Bem para si próprio”[1].

 

Cento e vinte e cinco anos depois, no livro que é amplamente considerado a obra fundadora da verdadeira tradição da ciência econômica, Adam Smith proclamou: Não é da bondade do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm com seu próprio interesse. Não nos dirigimos à sua humanidade, mas a seu amor-próprio, e nunca falamos com eles a respeito de nossas próprias necessidades, mas das vantagens deles.[2]

 

Autores recentes seguiram a mesma linha. Richard Alexander, por exemplo, ao escrever sobre a biologia evolutiva, defende que não entenderemos o comportamento humano se não compreendermos que as sociedades são “conjuntos de indivíduos que buscam seu próprio interesse”[3] – uma afirmação que repete a proclamação anterior de Richard Dawkins, no mesmo campo de pesquisa, de que “nascemos egoístas”[4].

 

Na época atual, o pressuposto do egoísmo foi aprimorado de modo significativo por autores que perceberam que os interesses de alguém podem abranger objetivos que estão além de seu próprio bem-estar individual. Essa observação é fundamental para a teoria da escolha racional – uma ampla corrente de pensamento que assumiu, nos últimos anos, papel central numa área das ciências sociais. 

 

De acordo com essa teoria, o comportamento individual pode ser mais bem explicado recorrendo-se a três fatores: os objetivos que o indivíduo determina de forma subjetiva, sejam eles quais forem[5], incluindo o modo pelo qual ele os compara ou classifica entre si; o conjunto de alternativas disponíveis para o indivíduo; e a estrutura causal da situação que o indivíduo enfrenta. A ação racional para dado indivíduo em qualquer situação particular, então, é definida como a ação que mais bem alcance os objetivos do indivíduo, quaisquer que sejam eles. 

 

O pressuposto do egoísmo, tal como aperfeiçoado na moderna teoria da escolha racional, é a característica principal daquilo que se tornou o modelo clássico do comportamento humano. Defensores sérios da teoria da escolha racional admitem que as ações humanas nem sempre são racionais. Uma quantidade de fatores pode promover a irracionalidade. 

 

Às vezes os objetivos do indivíduo podem não estar claramente definidos, ou podem não estar ordenados de maneira clara e coerente, de tal forma que ele é incapaz de classificá-los ou compará-los de modo lógico um com o outro. 

 

Ou as crenças do indivíduo acerca das alternativas disponíveis ou da estrutura causal da situação podem ficar distorcidas por meio de processos irracionais como o autoengano e a identificação dos desejos com a realidade. 

 

As pessoas também podem se comportar de maneira irracional como resultado do preconceito no modo como elas coletam indícios a respeito de fatos que pesam em sua tomada de decisão. 

 

Mesmo que elas pretendam as ações favoreçam seus objetivos, essas ações podem não ser planejadas da maneira ideal para fazê-lo. Se as ações não conseguem ser planejadas da maneira ideal que favoreça os objetivos da pessoa, elas são irracionais, segundo o modelo clássico. 

 

O fato de que as pessoas agem às vezes com a intenção de beneficiar os outros, um pouco em detrimento da capacidade de alcançar seus próprios objetivos, e de que o fazem de um modo que parece racional do ponto de vista do senso comum, eis aí uma verdade que podemos considerar levemente embaraçosa para o modelo clássico. 

 

Aqui está um exemplo. Numa experiência, cobaias humanas foram informadas de que elas estavam formando dupla com um parceiro (que, na verdade, era fictício); em seguida, pediram-lhes que realizassem uma tarefa simples num ambiente industrial, enquanto seus “parceiros” desempenhavam a mesma tarefa num lugar diferente. 

 

Após terminar a tarefa que lhes fora determinada, as cobaias foram informadas de que seus parceiros tiveram a possibilidade de repartir seu pagamento comum de $ 3 (essa experiência foi conduzida há alguns anos). Também lhes disseram que elas e seus parceiros haviam tido o mesmo desempenho. Então, as cobaias foram levadas a acreditar que, do total de $ 3, seus parceiros haviam repartido com elas $ 1, $ 1,50 ou $ 2, guardando o resto do dinheiro para eles. 

 

Após tomarem conhecimento da repartição, pediu-se que as cobaias respondessem a uma série de perguntas a respeito da maneira como elas se sentiam (alegres, agradecidas, culpadas etc.), como se sentiam com relação a seus parceiros, quão justa era a repartição, e assim por diante. 

 

Os resultados revelaram um padrão evidente. As cobaias ficavam mais felizes e gostavam mais de seus parceiros quando recebiam $ 1,50, que elas acreditavam ser um pagamento equitativo, tendo em vista seu desempenho. Não ficavam tão felizes quando recebiam $ 2, que entendiam ser uma compensação excessiva, e menos felizes ainda quando recebiam só $ 1, que julgavam ser menos do que mereciam. 

 

Parece que as cobaias humanas dessa experiência foram afetadas por dois motivos: o desejo de atuar tão bem quanto pudessem em prol delas próprias e o desejo de que as remunerações conjuntas fossem repartidas de maneira justa entre elas e seus parceiros. As cobaias preferiam receber $ 2 em vez de $ 1 porque elas preferiam atuar tão bem quanto pudessem em prol de si mesmas. No entanto, preferiam receber $ 1,50 em vez de $ 2 porque consideravam injusta a quantia maior de retribuição, mesmo que fossem elas as beneficiadas pela injustiça[6].

 

Temos aqui outro exemplo. Num levantamento sobre as gorjetas que eram dadas nos restaurantes, foram feitas duas perguntas às pessoas, cujas respostas são apresentadas aqui de maneira agregada (observem que esse levantamento foi realizado na década de 1980, quando o preço das refeições nos restaurantes era mais baixo do que é hoje): PERGUNTA 1. Se o serviço for satisfatório, quanto de gorjeta você acha que as pessoas deixam após terem pedido uma refeição que custa $ 10 num restaurante ao qual elas vão com frequência? RESPOSTA MÉDIA: $ 1,28 PERGUNTA 2. 

 

Se o serviço for satisfatório, quanto de gorjeta você acha que as pessoas deixam após terem pedido uma refeição que custa $ 10 num restaurante ou numa viagem para outra cidade a que elas nunca mais esperam voltar? RESPOSTA MÉDIA: $ 1,27.

 

Os entrevistados que responderam a essas duas perguntas parecem acreditar que as probabilidades de que o comportamento com relação à gorjeta possa ser recompensado na forma de um serviço excepcionalmente solícito ou sofra uma retaliação embaraçosa por meio de um garçom enraivecido não têm praticamente nenhuma influência no comportamento das pessoas com relação à gorjeta. 

 

Suas respostas tendem a apoiar o senso comum de que esse comportamento é guiado por um sentimento de retribuição justa por um serviço de qualidade, sem levar em conta qualquer vantagem que possa advir no futuro para a pessoa que dá (ou recusa) uma gorjeta[7].

 

Essas descobertas são reforçadas por uma leva de experiências mais recentes baseadas na teoria dos jogos. Um conjunto de jogos contendo diversas variáveis (um exemplo é o chamado “jogo da confiança”) reproduz situações da vida real em que pessoas transferem coisas entre si numa ordem sequencial, sem que exista algum verdadeiro mecanismo de coação que evite que elas “trapaceiem”, recusando uma transferência que outro jogador teria como prever. Apesar da presença de estímulos à trapaça, o padrão geral nesses jogos é que a maioria dos jogadores faz as transferências esperadas, as quais beneficiam outros jogadores à custa de certo prejuízo para o jogador que faz a transferência. Esse padrão de comportamento é chamado às vezes de “recompensa altruísta”. 

 

Ele é complementado por um padrão chamado “punição altruísta”, demonstrado em outro conjunto de jogos dos quais o mais conhecido é o “jogo do ultimato”. 

 

O padrão geral de resultados nesses jogos mostra que muitas pessoas – em alguns casos, a maioria – estão dispostas a punir outros jogadores por um comportamento que elas entendem ser desleal; e que elas agem assim mesmo tendo de pagar um preço por isso, e mesmo quando a atividade vista como desleal foi infligida a uma terceira parte que não o jogador que aplica a punição. 

 

Essas experiências deixam claro que às vezes as pessoas agem de uma maneira que não visa a promover seus próprios interesses. Na verdade, uma taxa relativamente alta de pessoas deixa de lado seus interesses e se mostra disposta a incorrer em prejuízo a fim de agir de modo correto ou de punir outros que ajam incorretamente[8].

 

Esses padrões também ficam evidentes em muitas circunstâncias normais e extraordinárias da vida real. Todos sabem que as pessoas às vezes fazem o impossível para se vingar, em prejuízo próprio, nos casos em que os indivíduos as ofenderam ou agiram de forma clamorosamente injusta contra elas ou contra outros. 

 

De maneira semelhante, algumas pessoas (embora, talvez, não muitas) se arriscaram seriamente e fizeram grandes sacrifícios para ajudar os outros, incluindo estranhos, nos casos em que estes últimos se encontravam em perigo ou haviam se tornado vítimas de injustiça[9].

 

A disposição de se sacrificar a fim de agir corretamente ou de punir outros por agirem incorretamente varia muito de pessoa para pessoa[10]. Do mesmo modo, a percepção do que constitui a equidade parece variar de maneira significativa entre as culturas[11].

 

No entanto, apesar das diferentes interpretações de equidade, a sensibilidade a considerações a respeito dela parece ser onipresente. O modelo clássico de comportamento humano sofre de uma carência sistemática: não consegue explicar o comportamento em situações nas quais a equidade é uma característica evidente. 

 

É óbvio, então, que os seres humanos se comprometem muito mais com um comportamento pró-social (um comportamento que beneficia os outros, às vezes em detrimento daqueles que o assumem) do que o modelo clássico nos levaria a prever. O comportamento pró-social não é exclusivo dos seres humanos[12].

 

Não obstante, eles também fazem avaliações e emitem opiniões a respeito da justiça ou da equidade de seu próprio comportamento e do comportamento dos outros, opiniões essas que supostamente moldam ou canalizam seu comportamento pró-social de maneiras distintas. 

 

Parece que a capacidade de ser motivado por avaliações e opiniões acerca da equidade que transcendam, ou pareçam transcender, aquilo que os indivíduos consideram ser seu interesse está fora do alcance do modelo clássico de comportamento humano. 

 

Podemos comparar as avaliações e as opiniões a respeito da justiça e da equidade com as avaliações e as opiniões sensatas. Se eu considerar que, para manter meu bem-estar no longo prazo, é prudente que eu siga uma dieta nutritiva e pratique exercícios regularmente, essa é uma opinião sensata. 

 

Igualmente, se eu decidir apoiar a aspiração de minha filha em seguir uma carreira na área de música pagando pelas aulas, essa decisão estará baseada num raciocínio sensato. 

 

Conclusões e decisões desse tipo são sensatas porque se baseiam em objetivos que são incertos. Nossa vida está cheia de ocasiões que exigem avaliações sensatas a respeito de todos os tipos de assunto. Muitos desses assuntos são banais: devo ouvir música agora, e, caso decida que sim, que música eu provavelmente apreciaria mais? 

 

Outros são significativos: com quem devo me casar (se quiser me casar)? Apesar da variedade, as avaliações sensatas têm em comum o fato de que os objetivos à luz dos quais nos envolvemos com elas dependem das metas e prioridades que possamos ter, metas e prioridades essas que uma outra pessoa pode não compartilhar conosco. 

 

Em comparação, as avaliações e as opiniões acerca da equidade baseiam-se, em última análise, em padrões que os seres humanos constroem, de maneira bastante diversa daquela em que eles refletem sobre os objetivos incertos. Normalmente, acreditamos que os critérios fundamentais que estão por trás das opiniões a respeito da equidade deveriam ser compartilhados por todos. 

 

Também acreditamos que as prescrições de conduta baseadas nesses critérios deveriam, ao menos em alguns casos importantes, ter precedência sobre as, ou “passar na frente” das prescrições baseadas em opiniões sensatas. É claro que as pessoas geralmente discordam quanto aos critérios que estão por trás das opiniões sobre a equidade. 

 

Mas o fato de elas discordarem a respeito desses critérios é compatível com o fato de elas os considerarem objetivamente válidos (no sentido de que não dependem das metas subjetivas dos indivíduos). 

 

As pessoas discordam o tempo todo a respeito de questões objetivas, incluindo questões factuais. Na verdade, a própria discordância tem como premissa o pressuposto de que existe uma questão objetiva acerca da qual é possível discordar. Na falta desse pressuposto, as pessoas não encaram suas diferenças como discordâncias, mas como meras divergências de opinião ou gosto. 

 

A capacidade de se comprometer com avaliações a respeito de questões de justiça ou de equidade e de ser influenciado por opiniões sobre essas questões é conhecida como a capacidade de senso de justiça. Faz tempo que a capacidade de senso de justiça tem sido associada à capacidade de linguagem, e ambas têm sido geralmente consideradas típicas dos seres humanos. 

 

Em Política, Aristóteles apresenta o seguinte argumento: a natureza, como gostamos de afirmar, não cria nada sem um propósito, e o homem é o único animal dotado de fala […]. O objetivo da fala […] é demonstrar vantagem e desvantagem e, portanto, justiça e injustiça também. Pois a característica que diferencia o homem de todos os outros animais é que só ele é capaz de discernir entre bem e mal, justiça e injustiça, e assim por diante.[13]

 

O filósofo do século XVII Thomas Hobbes também acreditava que a capacidade de senso de justiça é típica do ser humano, e ele a associava à linguagem: É verdade que alguns seres vivos, como abelhas e formigas, vivem socialmente entre si […] e, no entanto, sua única orientação vem de suas opiniões e desejos particulares; nem fala, por meio da qual um deles possa expressar ao outro o que considera útil para o bem comum: e, portanto, algum homem talvez deseje saber por que a espécie humana não pode fazer o mesmo.

 

 A que eu respondo […] [entre outras coisas, que] seres irracionais não são capazes de diferenciar injúria de dano; e, portanto, enquanto estiverem despreocupadas, não se sentem ofendidas por seus semelhantes […][14].

 

Embora no conjunto de sua obra Aristóteles enfatize que a capacidade de senso de justiça torna possível compartilhar, de forma substancial, normas e critérios, enquanto Hobbes chama a atenção para o fato de que a discordância acerca desses critérios cria ocasiões de conflito, ambos concordam que a capacidade de senso de justiça é típica dos humanos, que ela está associada à igualmente típica capacidade de linguagem, e estando essa capacidade entre os principais atributos das sociedades humanas. 

 

Apesar de questões relacionadas às origens tanto da linguagem como do senso de justiça terem alimentado durante séculos as especulações, não temos nenhuma interpretação aceitável dessas origens, principalmente porque os indícios aos quais podemos recorrer para provar ou refutar qualquer interpretação são pré-históricos e extremamente incompletos. 

 

Uma hipótese recente sugere que, à medida que as sociedades hominídeas se ampliavam e se tornavam mais complexas, a capacidade de linguagem pode ter evoluído em resposta à necessidade de que houvesse um modo barato de transmitir estimativas acerca da confiabilidade de cuidar dos parceiros e de outros assuntos semelhantes[15].

 

Embora essa hipótese pareça interessante e seja compatível com a pequena quantidade de evidências relevantes que possuímos, ela está longe de ser convincente. 

 

Consequentemente, não podemos explicar como as capacidades paralelas de linguagem e de senso de justiça se desenvolveram nos humanos. 

 

Se algum dia conseguirmos obter uma interpretação convincente dessas origens, ela irá constituir o primeiro capítulo de alguma futura história das ideias a respeito da justiça. Pois é com a aquisição da capacidade de senso de justiça que nossa história idealmente começaria. 

 

Na falta de tal interpretação, devemo-nos contentar com a observação de que a história das ideias acerca da justiça começa com a capacidade de senso de justiça firmemente instalada dentro do repertório de atributos humanos. 

 

Felizmente, possuímos, de fato, sólidas evidências de ideias a respeito da justiça que remontam a milhares de anos, aos tempos da escrita pré-alfabética. Podemos iniciar nossa história, então, dando uma olhada em alguns dos mais antigos documentos escritos da história humana.

 

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[1] Hobbes, Leviathan, cap. 14, p. 74.

[2] Smith, Wealth I. 2, p. 14.

[3] Richard Alexander, The Biology of Moral Systems. Hawthorne, NY, A. de Gruyter, 1987, p. 3.

[4] Richard Dawkins, The Selfish Gene, nova ed. Oxford, Oxford University Press, 1989, p. 3. Embora a intenção de Dawkins tenha sido descrever a tendência que os genes têm de se reproduzir, a grande maioria das pessoas entendeu que sua afirmação se aplicava aos seres humanos e não a seus genes.

[5] Para uma discussão mais completa e precisa, ver Jon Elster, “Introduction”, em Jon Elster (org.), Rational Choice. Nova York, New York University Press, 1986, pp. 1-33. 

 

[6] Austin, G. e Walster, E., “Participants’ reation to ‘equity with the world’”, Journal of Experimental Social Psychology 10 (1974): 528-548. Essa e outras experiências estão discutidas em Melvin J. Lerner, “The justice motive in human relations and the economic model of man: a radical analysis of facts and fictions”, em Valerian J. Derlega e Janusz Grzelak (orgs.), Cooperation and Helping Behavior: Theories and Research. Nova York, Academic Press, 1982, pp. 249-78. 

 

[7] Daniel Kahneman, Jack L. Knetsch e Richard Thaler, “Fairness as a constraint on profit seeking: Entitlements in the market”, American Economic Review 76:4 (setembro de 1986): 728-741. 

[8] Ver Ernest Fehr e Simon Gächter, “Altruistic punishment in humans”, Nature 415 (10 de janeiro de 2002): 137-140, e Ernst Fehr e Urs Fischbacher, “The nature of human altruism”, Nature 425 (23 de outubro de 2003): 785-791. 

[9] Ver Kristen R. Monroe, The Heart of Altruism: Perceptions of a Common Humanity. Princeton, Princeton University Press, 1996. 10 Ver Ernst Fehr e Urs Fischbacher, “The nature of human altruism”, Nature 425 (23 de outubro de 2003): 785-791. 

[10] Ver Ernst Fehr e Urs Fischbacher, “The nature of human altruism”, Nature 425 (23 de outubro de 2003): 785-791. 

[11] Ver Joseph Henrich, Robert Boyd, Samuel Bowles, Colin Camerer, Ernst Fehr, Herbert Gintis e Richard McElreath, “In search of homo economicus: Behavioral experiments in 15 small-scale societies”, Economics and Social Behavior 91:2 (maio de 2001): 73-78.

[12] Ver Frans de Waal, Good Natured: the Origins of Right and Wrong in Humans and Other Animals. Cambridge, MA, Harvard University Press, 1996; e Claudia Rutte e Michael Taborsky, “Generalized Reciprocity in Rats”, Plos Biology 5:7 (julho de 2007): e 196. 

 

 

[13] Aristóteles, Politics I.ii, 1253a (tradução de Welldon).

[14] Hobbes, Leviathan, cap. 17, pp. 94-95. 15 Essa hipótese é sugerida por Richard Joyce em The Evolution of Morality. Cambridge e Londres: MIT Books, 2006, p. 89.

[15] Essa hipótese é sugerida por Richard Joyce em The Evolution of Morality. Cambridge e Londres: MIT Books, 2006, p. 89.

 

 

quarta-feira, 22 de julho de 2020

“(...) não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou com os explorados”
Florestan Fernandes.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Dworkin:

Tese da  “única resposta correta”

a) O conceito de Direito guardaria estrita vinculação com princípios morais, embora, em tese, não se confunda com a moral. O Direito seria, na realidade, um ramo da moral, de modo que os princípios jurídicos teriam a sua origem, precisamente, na moral. Metaforicamente, pode-se imaginar uma árvore, com raízes e diversos galhos. As raízes seriam os princípios morais, ao passo que um dos vários galhos seria o Direito;

b) Esses princípios que sustentariam o sistema jurídico seriam dois: o direito a ser tratado com igual consideração e respeito e a responsabilidade pessoal de cada um por sua própria vida;

c) A aplicação prática, bem como a fundamentação da moral, não incluiria senão os seus próprios princípios: cada um deles deveria ter o seu papel elaborado em um projeto geral e conjunto, que deveria considerar todos os outros princípios, no que Dworkin chamou de unidade e integridade da moral, de uma moral compartilhada por uma dada comunidade política. Como esses princípios fundamentariam o Direito, também no Direito essa unidade deveria ser buscada. Haveria, em todo caso, verdades morais, assim como verdades jurídicas

d) O Direito, portanto, tratar-se-ia de um sistema íntegro, coerente e completo de regras e princípios — ou, ao menos, ele deveria ser visto e interpretado como tal. A base desse sistema seriam, naturalmente, os princípios morais, que dariam fundamento para todo o resto, inclusive para a interpretação judicial. Daí é que aos juízes caberia decidir “por princípio”;

e) A melhor interpretação seria aquela que envolvesse a correlação entre todo e partes, ou, em outros termos, que demonstrasse como os casos novos se enquadrariam naquela totalidade íntegra e coerente de princípios e regras jurídicas. Naquela totalidade, residiria a “única resposta correta”, cuja busca caberia a Hércules, o juiz ideal de Dworkin, habitante de um mundo próximo ao da “posição original”, de John Rawls;

f) Embora Hércules se trate de um ideal regulador — o juiz com o conhecimento, capacidade, tempo e paciência ilimitados, além de uma dose invejável de isenção —, Dworkin deixa claro que, para ele, haveria, sim, uma única resposta ou interpretação correta para todo caso jurídico. Bastaria, para encontrá-la, que fôssemos dotados dessas capacidades. Ou, em outras palavras: se todos dispuséssemos dessas qualidades, todos chegaríamos a uma mesma resposta para todo e qualquer caso. Não haveria espaço para o dissenso;

g) Na medida em que se deveria partir da ideia de um sistema íntegro e coerente de princípios, as colisões entre estes seriam apenas aparentes. Caberia ao intérprete integrá-los naquela unidade, por assim dizer, holística;

h) Ao concentrar o seu ideal regulador na figura de um juiz, Dworkin aposta no Poder Judiciário como o intérprete mais autêntico da Constituição.

(PORTUGAL, André. Decisão Judicial e Racionalidade: Crítica a Ronald Dworkin. Porto Alegre: SAFe, 2017).

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Efeito Dunning-Kruger: ter consciência das limitações da cognição (entre outras coisas, pensar) é algo que exige certa proficiência em metacognição (pensar sobre pensar). Resumindo, ser burro às vezes significa ser burro demais pra se dar conta da própria burrice.

Negar atendimento a pessoas de outros municípios: ilegal e inconstitucional: arts. 5º, caput, 6° e 196 da CR/88 c/c Lei 8.080/99 (Lei do SUS), art.7°, I (universalidade do atendimento no SUS).

domingo, 3 de maio de 2020

Os princípios da prevenção e precaução são aplicáveis no direito sanitário e podem ser utilizados como fundamento de proteção do direito à saúde. STF, ADI 5592, j. 11/09/2019.
“A competência para legislar sobre direito à saúde é concorrente, logo, Estados e Municípios podem adotar medidas sanitárias de caráter restritivo a partir do princípio federativo da predominância do interesse”. STF, ADI 6341-MC, j. 14/04/2020

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Dolo específico

Decidiu o STJ no RHC 124871 que para a configuração do crime de dispensar ou declarar a inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais (artigo 89 da Lei 8.666/1993) é preciso haver a presença do dolo específico de causar dano ao erário e do efetivo prejuízo à administração pública.

Dignidade humana

BVerfGE 45, 187 (1997): 


“Um dos pressupostos da execução de pena compatível com a dignidade humana é que reste ao condenado à prisão perpétua, em principio, uma chance de algum dia voltar a gozar da liberdade”

Boa-fé

A boa-fé se relaciona com: 

a) venire contra factum proprium, 

b) supressio/surrectio; 

c) duty to mitigate the loss;

 d) substancial performance;

e) exceptio doli; 

f) tu quoque.

Totalitarismo

Como as ideias totalitárias se transformam em memes e se difundem (infelizmente):


“Deutschland erwache!" (Alemanha, acorda!)

"Deutschland über alles" (Alemanha acima de tudo)...

domingo, 26 de abril de 2020

Curiosidade

Momento é uma unidade de tempo criada na idade média. Equivale a 90 segundos.

Segurança jurídica

Características da segurança jurídica no Brasil


Por Marco Túlio Reis Magalhães

Costuma-se dizer que a segurança jurídica é um princípio essencial (e inerente) ao Estado de Direito e que sua configuração depende de cada contexto histórico. De fato, a doutrina acentua a relevância ímpar da segurança jurídica em conexão com as experiências do Estado de Direito e com a realização da própria ideia de justiça material.[1] Sua relação com o princípio da legalidade é sempre revisitada, em termos históricos, relembrando a ideia central para o Estado de Direito de um governo de leis e não de homens.[2]

Costuma-se afirmar, ainda, que toda a construção constitucional liberal tem em vista a certeza do Direito, pois necessitava-se de segurança para proteger o sistema da liberdade codificada do direito privado burguês e da economia de mercado. Desde cedo, o princípio geral da segurança jurídica (e sua dimensão de proteção da confiança dos cidadãos) se colocou como elemento constitutivo do Estado de Direito, exigível a qualquer ato de poder (Legislativo, Executivo e Judiciário). Vincula-se à garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito, bem como à garantia de previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos do poder público. O que exigiria, no fundo, seria o seguinte: 1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos de poder; 2) de forma que, em relação a eles, o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos de seus próprios atos.[3]

De maneira geral, sempre se acentuou a função de certeza do Direito, de capacidade de controlar a insegurança, de previsibilidade e estabilidade temporal das regras jurídicas, de busca de unidade do ordenamento e preocupação com sua eficácia. Mas a crescente complexidade e o desenvolvimento das relações sociais e jurídicas permitem observar a ampliação do foco de observação da segurança jurídica, a considerar também como elementos centrais a efetividade de direitos fundamentais e a proteção das expectativas de confiança legítima. Por isso, faz-se necessário um exame crítico de cada ordenamento jurídico e de suas influências, o que requer cautela com as aproximações feitas a partir do Direito Comparado.[4]

Afinal de contas, como relembra Humberto Ávila, a segurança jurídica não tem como ser investigada se não por meio de uma perspectiva analítica capaz de reduzir a ambiguidade e a vagueza dos seus elementos constitutivos e de indicar os seus aspectos: material (qual conteúdo da segurança jurídica?), subjetivo (quem são os sujeitos da segurança?), objetivo (segurança do quê?), temporal (segurança jurídica quando?), quantitativo (em que medida?), justificativo (para quê e por quê?). Daí por que ele afirma ser imprescindível olhar para um determinado ordenamento jurídico, para sua superestrutura (o conjunto) e para sua estrutura constitucional (as partes), a fim de esclarecer as possíveis acepções, dentre aquelas analiticamente discerníveis, que se podem identificar.[5]

Contudo, dado o caráter hercúleo de desvendar todos esses mistérios, nem se cogita assumir aqui essa tarefa. Pelo contrário, o que se quer é apenas ressaltar alguns aspectos, situações e pontos de vista, pelos quais o Supremo Tribunal Federal, em especial, encontra caminhos para abordar e desenvolver esse importante princípio.

A Constituição de 1988 não só protege a segurança jurídica, mas também a consubstancia, ao definir, ilustrativamente: as autoridades competentes, os atos a serem editados, os conteúdos a serem regulados, os procedimentos devidos, as matérias a serem tratadas, tudo a potencializar os ideais de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade normativas. Assim, a segurança jurídica é protegida constitucionalmente em várias de suas dimensões: segurança do Direito, pelo Direito, frente ao Direito, dos direitos e como um direito. Sua relevância é muito grande, o que se denota pelo modo como é protegida, pela insistência de sua proteção, pela independência de seus fundamentos e pela eficácia recíproca desses mesmos fundamentos.[6]

Assim, em diversas passagens de nossa Constituição estamos a tratar, em maior ou menor medida (de forma implícita ou explícita) da segurança jurídica.[7] Por exemplo, quando tratamos do princípio da legalidade e de todos seus desdobramentos normativos: processo legislativo, devido processo legal, supremacia da lei, reserva de lei, anterioridade da lei, vigência da lei, incidência da lei, retroatividade e ultra-atividade da lei, repristinação da lei, lacunas da lei, legalidade administrativa (artigo 37, caput, CF/88), legalidade penal (artigo 5º, inciso XXXIX, CF/88) e legalidade tributária (artigo 150, inciso I, CF/88).[8]

De um lado, afirma-se a supremacia da lei (em conformidade com a Constituição) como um vetor essencial para favorecer os ideais já mencionados e incrementar a segurança jurídica. Nesse sentido, a lei é garantia de liberdade de ação e de limitação do poder decorrentes da Constituição. De outro lado, a lei reflete o princípio democrático, assentada na soberania popular. A questão da reserva de lei também é importante nesse contexto.[9]

Além disso, a segurança jurídica, em termos de segurança do Direito (dimensão objetiva), tem na própria Constituição uma série de disposições e institutos que impedem mudanças bruscas e acentuadas. Ao mesmo tempo, bloqueia a tentativa de abolição de elementos centrais do ordenamento. Nesse sentido, destacam-se: as cláusulas pétreas (artigo 60, parágrafo 4º, CF/88); o rigor do processo de emenda constitucional (artigo 60, CF/88); os princípios sensíveis (artigo 34, inciso VI, CF/88); as cautelas relativas à intervenção excepcional nos entes federativos (artigos 34 a 36, CF/88); as limitações e o caráter sempre provisório de situações que fogem à normalidade para a garantia do Estado e das instituições democráticas (Estado de Defesa e Estado de Sítio – artigos 136 a 139, CF/88); a definição das instituições de segurança pública (artigo 144, CF/88) e das Forças Armadas (artigos142 e 143, CF/88) etc.

Mas de nada adiantaria toda essa engenharia se não se pudesse estabelecer o controle efetivo para a limitação do poder. Sob a égide da Constituição vigente, não parece haver espaço para a impossibilidade ou desnecessidade de controle (elemento importante para a segurança jurídica), embora haja debate acerca dos seus limites e da sua intensidade (em termos de mérito administrativo, de políticas públicas, de freios e contrapesos). Por isso mesmo, o texto constitucional estruturou o princípio da separação de poderes (artigo 2º, CF/88), em lembrança à lição de Montesquieu de que o poder só encontra limites no poder (é preciso que o poder detenha o poder).[10]

Nesse sentido, destaca-se que a Constituição brasileira concebeu valor central ao controle jurisdicional da administração[11], capaz não só de rever a sua atuação, mas também de impor-lhe medida.[12] O princípio constitucional da universalidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, CF/88) parece reforçar aqui a segurança jurídica, inclusive em relação ao Poder Legislativo, em determinadas situações de atuação legislativa inconstitucional.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é rica em casos e discussões nos quais a segurança jurídica toma destaque. Vejamos alguns deles.

A discussão sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade, por exemplo, em suas vertentes de proibição de excesso (übermassverbot) e de vedação da proteção insuficiente (Untermassverbot), tem marcado um importante papel, em termos de segurança jurídica e estabilização de expectativas, ao exigir que o Estado atue com coerência e de forma ponderada — proibindo restrições casuísticas e operando como critério de solução de colisão de direitos fundamentais.[13]


A discussão sobre o princípio da proteção da confiança legítima,[14] entendido como desdobramento ou dimensão subjetiva da segurança jurídica, normalmente ligado à defesa dos cidadãos contra o arbítrio estatal, também tem sido afirmada sob a égide da Constituição de 1988 pelo STF. Tem aqui destaque o famoso caso da Infraero, em que o TCU determinara a revisão de mais de 366 admissões realizadas sem concurso público, embora tivesse havido processo seletivo rigoroso, em observância ao regulamento da Infraero, validado por decisão administrativa daquela empresa estatal e pelo próprio TCU (em acórdão administrativo anterior). Houve lapso de quase 10 anos entre o deferimento parcial da liminar em favor dos impetrantes no mandado de segurança perante o STF e o julgamento de mérito. Esses elementos, somados à boa-fé objetiva dos impetrantes e ao fato de ser o Poder Público o responsável pela situação desfavorável criada a eles, fizeram prevalecer o fundamento explícito da proteção da confiança e da segurança jurídica, como balizadores do afastamento da nulidade das contratações.[15]

Outro entendimento interessante vem se consolidando na jurisprudência do STF nesse tema. A Corte passou a exigir que o TCU assegurasse a ampla defesa e o contraditório nos casos em que o controle externo de legalidade exercido pela Corte de Contas, para registro de aposentadorias e pensões, ultrapassasse o prazo de cinco anos do ato de concessão inicial (emanado do órgão de origem), sob pena de ofensa ao princípio da confiança — face subjetiva do princípio da segurança jurídica.[16] Essa jurisprudência se consolidou em período anterior à Súmula Vinculante 3, que textualmente veio a dispor em sentido contrário.[17]

Ocorre que o desenvolvimento do debate e das situações trazidas à apreciação do STF fez com que este redefinisse seu entendimento, sem que houvesse prejuízo da segurança jurídica. É que, como a demora do envio do processo administrativo seria ocasionada pelo órgão de origem e não pelo TCU, este último acabaria sendo prejudicado, em termos de eficiência administrativa, por situação a que não teria dado causa. Por entender não se poder incutir esse ônus ao TCU, a jurisprudência foi revisitada pelo STF para assentar que o prazo de cinco anos deveria ser contado da chegada do processo de controle externo ao TCU. Caso fosse ultrapassado, estaria configurada situação mitigadora da parte final da Súmula Vinculante 3, devendo-se observar a garantia da ampla defesa e do contraditório. Assim, prestigiou-se a proteção do servidor aposentado ou do pensionista que não tiver seu processo apreciado pelo TCU após cinco anos da entrada do processo naquele órgão de controle externo, bem como assegurou-se a funcionalidade da atuação eficiente do TCU em relação ao que dispõe a Súmula Vinculante 3.[18]

Outro questão institucionalizada na Constituição de 1988 e que se irradia para a legislação infraconstitucional é o aspecto temporal da segurança jurídica, que por vezes é levado à discussão de nossa Suprema Corte. Nesse sentido, pode-se pensar em institutos como: irretroatividade da lei mais gravosa; garantias do direito adquirido, do ato jurídico e da coisa julgada; prescrição e decadência; direito intertemporal e limitação dos efeitos jurídicos no tempo; preclusão; prazos processuais; ato das disposições constitucionais transitórias (e a possibilidade de revisão constitucional — artigo 3º, ADCT); justiça de transição de regimes.

É interessante notar que a dosagem varia conforme a área e o bem jurídico envolvido. Um caso interessante e que tem despertado certa controvérsia é a interpretação da imprescritibilidade das ações de ressarcimento, as quais têm relação com atos de improbidade cometidos por agente público (artigo 37, parágrafo 5º, CF/88). A jurisprudência do STF vem confirmando a aplicação deste artigo sem maiores ressalvas, a despeito da voz divergente do ministro Marco Aurélio, que afirma que tal entendimento contraria a segurança jurídica — responsável pela cicatrização de situações pela passagem do tempo.[19] Contudo, recente decisão da 1ª Turma, que decidiu pelo recebimento do recurso extraordinário e sua afetação ao Plenário, em razão da relevância do tema, pode dar novos encaminhamentos ao tema.[20]

Ainda nessa linha, destaca-se o princípio da irretroatividade da lei mais gravosa como reflexo da segurança jurídica e que se espraia nos diversos ramos jurídicos, com destaque à anterioridade no direito penal (artigo 5º, inciso XL, CF/88) e às anterioridades clássica e nonagesimal no Direito Tributário (artigo 150, inciso III, alíneas “b” e “c”; e artigo 196, parágrafo 6º, CF/88).

Recentemente, também se colocou a discussão da segurança jurídica no centro do debate do direito constitucional e eleitoral, em razão das controvérsias ligadas à Lei da Ficha Limpa e à anterioridade eleitoral — artigo 16, CF/88 e LC 135/2010.[21]

Um aspecto atual e extremamente difícil, em termos de acomodação da segurança jurídica, diz respeito à chamada justiça de transição, em conexão com o crescente incremento de normatização supranacional e concomitante controle de convencionalidade por organizações internacionais.[22] Se tomarmos como exemplo a recente experiência da transição brasileira entre ditatura militar e redemocratização pós-1988, isso se torna evidente (seja em relação aos perpetradores do regime de exceção, seja em relação às vítimas — artigos 8º e 9º, ADCT).

Nesse sentido, o exemplo do julgamento da ADPF 153 no STF,[23] em cotejo com o Caso Gomes Lund e outros (referente à Guerilha do Araguaia) na Corte Interamericana de Direitos Humanos, parece emblemático.[24] O Supremo, por maioria, julgou improcedente a ação, destacando a impossibilidade de o Poder Judiciário rever as definições adotadas na Lei de Anistia (Lei 6.683/1979), o que, em princípio, não seria óbice ao Poder Legislativo, como ocorrera em experiências do Direito Comparado (Chile e Argentina). Também não se reconheceu, em geral, a possibilidade de direito costumeiro internacional em matéria penal, deixando transparecer, ainda, haver uma ideia de distinção entre os efeitos de autoanistia e anistia como fruto de acordo político para transição democrática. Contudo, a Corte Interamericana condenou o Brasil a uma série de imposições (que só não causaram maior tensão, em termos de segurança jurídica, pelo fato de o Brasil ter ratificado a Convenção Interamericana na década de 1990 e de ter reconhecido a jurisdição da Corte Interamericanca com efeitos prospectivos, ou seja, para casos a partir de então).

Outro exemplo diz respeito à possibilidade de modulação de efeitos das decisões de inconstitucionalidade (artigo 27, Lei 9.868/1999; artigo 11, Lei 9.882/1999), que é feito, segundo o texto legal, ou por razões de segurança jurídica, ou por razões de excepcional interesse social. Esse mecanismo tem aberto uma gama de possibilidades, como a expansão para aplicação em instrumentos de controle tipicamente difuso, como o recurso extraordinário.[25] Um recente caso emblemático foi a necessidade de modular os efeitos de uma decisão que, a partir da análise de uma determinada lei de 2007 (que criara o ICMBio), faria com que todas as demais leis posteriores oriundas de projeto de conversão de Medida Provisória também fossem declaradas inconstitucionais, por vício formal (inobservância do art. 62, §9º, CF/88).[26]

Recentemente, dois temas de inegável relevância, em termos de segurança jurídica, entraram na pauta da Suprema Corte. Em primeiro lugar, a repactuação da divisão das receitas oriundas da exploração de recursos previstos no parágrafo1º do artigo 20 da Constituição, em que já houve liminar em mandado de segurança para suspender o trâmite do processo legislativo — posteriormente cassada pelo Plenário,[27] além de ações diretas de inconstitucionalidade,[28] com liminar monocraticamente deferida em uma delas e que deve obrigatoriamente ser levada a julgamento plenário em curto espaço de tempo.[29] Em segundo lugar, a questão da liberdade de criação de partidos políticos e a possibilidade de intervenção preventiva da Corte para evitar atuação legislativa em conflito com jurisprudência recente do STF — em mandado de segurança que acaba de ser julgado nesta semana.[30] São temas de grande repercussão jurídica e social e que merecem maior reflexão e atenção de todos, inclusive em termos de interpretação do princípio da segurança jurídica.


Como mencionado, todos esses desafios dependem de um Poder Judiciário capaz de dar respostas adequadas às demandas e de garantir o alcance da segurança em suas mais variadas dimensões. A Constituição estabeleceu um Poder Judiciário consolidado e de atuação independente, dotado de garantias e de instrumentos de atuação.

Em face do panorama aqui exposto, pode-se vislumbrar que, se o princípio da segurança jurídica é caro ao Estado de Direito e sua configuração depende de cada contexto jurídico, para a Constituição de 1988 e para o ordenamento jurídico brasileiro, ele parece ser fundante e essencial. Os exemplos aqui trazidos de forma ilustrativa (perspectivas e derivações da legalidade, da proporcionalidade, da proteção da confiança, da estabilidade temporal, do sistema tributário, da Justiça de transição, do controle de constitucionalidade) demonstram que tanto a Constituição quanto a jurisprudência do STF identificam um valor fundamental a este princípio nos seus mais diversos aspectos e desdobramentos (sempre em descoberta).

Além disso, a complexidade e a dinâmica dos arranjos jurídicos-institucionais previstos na Constituição, aprimorados em sua vigência e irradiados para a legislação, exigem um contínuo desenvolvimento e o rigor normativo e hermenêutico para manter e aperfeiçoar a segurança jurídica.

[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 487.
[2] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional: o estado da questão no início do século XXI, em face do direito comparado e, particularmente, do direito positivo brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 177 e p. 181-183.
[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra, Portugal: Livraria Almedina, 1998, p. 109 e p. 255-256.
[4] TORRES, Heleno Tavares. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 34-35.
[5] Ávila, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 678.
[6] Ávila, Humberto, op. cit., 2012, p. 679-680.
[7] A segurança jurídica pode ainda ser captada em nossa Constituição a partir das seguintes definições: a segurança como garantia, a segurança como proteção dos direitos subjetivos, a segurança como direito social e a segurança como meio do direito. SILVA, José Afonso da. Constituição e Segurança Jurídica. In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Org.). Constituição e Segurança Jurídica: estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. 2 ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 17.
[8] MENDES; BRANCO, op. cit., p. 158.
[9] Historicamente, se ao princípio democrático interessaria mais a qualidade do órgão da qual emana (reserva do Parlamento), aos princípios do Estado de Direito e de Separação de Poderes interessava mais a matéria da lei, como forma de se evitar o arbítrio. VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva de lei: a causa da lei na Constituição portuguesa de 1976. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1992, p. 35.
[10] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 5ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 109.
[11] Cumpre destacar, ainda, que a expressão “controle jurisdicional da Administração” é mais ampla do que a expressão “controle jurisdicional do ato administrativo”, pois abrangeria contratos, atividades ou operações materiais e a omissão ou inércia da Administração. MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 185-186.
[12] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 943-944.
[13] Vide, por exemplo: IF 2915/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator para o acórdão Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ 28.11.2003; ADI 855/PR, Rel. Min. Octavio Gallotti, Pleno, DJe 27.3.2009. Para um estudo mais aprofundado dos casos iniciais e tendências, vide: MENDES, Gilmar Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. In: Repertório IOB Jurisprudência: Tributário Constitucional e Administrativo, v. 4, p. 23-44, 2000.
[14] Segundo Hartmut Maurer, sua ideia, em termos gerais, já era conhecida há um bom tempo, mas é somente a partir da Segunda Guerra que ele é identificado como princípio jurídico independente. Outra peculiaridade é o fato de ter sido desenvolvimento pela jurisprudência e ter recebido aprovação na doutrina. MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Trad. de Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2001, p. 67.
[15] Vide: MS 22.357/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ 5.11.2004.
[16] Vide: MS 24.448/DF, Rel. Ayres Britto, Plenário, DJe 14.11.2007.
[17] Dispõe a Súmula Vinculante n.º 3 o seguinte: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”.
[18] Vide: MS 24.781/DF, Rel. Ellen Gracie, Redator para o acórdão Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJe 9.6.2011.
[19] Vide: MS 26210/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, DJe 4.9.2008; RE n.º 578.428/RS-AgR, Rel. Min. Ayres Britto, 2ª Turma, DJe 14.11.2011; RE n.º 646.741/RS-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe 22.10.2012; AI n.º 712.435/SP-AgR, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma, DJe 12.4.2012.
[20] Vide: AI 819.135/SP-AgR, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, julg. em 28.5.2013, Informativo n. 708.
[21] Vide: RE 633.703/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJe 18.11.2011; RE 630.147, Rel. Min. Ayres Britto, Redator para o acórdão, Min. Marco Aurélio, Pleno, DJe 5.12.2011; RE 631.102, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Pleno, DJe 20.6.2011.
[22] Um caso emblemático e muito interessante é o da responsabilidade decorrente do regime de controle/vigilância do muro de Berlim aplicado pela República Democrática Alemã – RDA, julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos (CASO STRELETZ, KESSLER E KRENZ v. GERMANY). Para uma análise detalhada, consultar: VIGO, Rodolfo Luis. La injusticia extrema no es derecho: (de Radbruch a Alexy). - Buenos Aires: Facultad de Derecho UBA: La Ley, 2006.
[23] Vide: ADPF 153/DF, Rel. Min. Eros Grau, Pleno, DJe 6.8.2010.
[24] CARVALHO RAMOS, André de. Crimes da ditadura militar: a ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. (Org.). Crimes da Ditadura Militar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 178-180.
[25] Vide: RE 556.664/RS e RE 559.882/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ 14.11.2008.
[26] Vide: ADI 4029/DF, Rel. Min. Luix Fux, Pleno, DJe 27.6.2012). Eis o que ficou assentado na ementa do julgado, em razão da Questão de Ordem arguida pelo Advogado-Geral da União em 7.3.2012 e acolhida pelo Plenário do STF em 8.3.2012: (...) 11. Ação Direta julgada improcedente, declarando-se incidentalmente a inconstitucionalidade dos artigos 5º, caput, e 6º, caput e parágrafos 1º e 2º, da Resolução n.º 1 de 2002, do Congresso Nacional, postergados os efeitos da decisão, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/99, para preservar a validade e a eficácia de todas as Medidas Provisórias convertidas em Lei até a presente data, bem como daquelas atualmente em trâmite no Legislativo. (grifo nosso)
[27] MS 31816/RJ MC-AgR, Rel. Luiz Fux, Redator para o acórdão Min. Teori Zavascki, Pleno, DJe 27.2.2013.
[28] ADI 4916/ES, ADI 4917/RJ, ADI 4918/RJ, ADI 4920/SP.
[29] Decisão monocrática da Ministra Cármen Lúcia na ADI 4917/RJ, DJe 21.3.2013.
[30] Há votos cujo inteiro teor já foram disponibilizados na internet. Para uma noção geral da discussão e dos votos, vide notícias do STF, nos seguintes links: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=240979 ; http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=241043 ; http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=241099&caixaBusca=N ; http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=241706 ;
Marco Túlio Reis Magalhães é doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.